A governança corporativa como ela é: práticas no Brasil

outubro 3, 2018 9:00 am - Publicado por Deixe um comentário

Enquanto muitas empresas brasileiras de controle familiar melhoram sua governança com impacto positivo no valor da companhia, assim como probabilidade de sobrevivência, o caminho para a maturidade ainda é longo. Neste artigo, demonstramos que velhos mitos continuam retardando o progresso, enquanto novos mitos surgem.

Ao final de um seminário recente sobre governança familiar no Brasil, um empresário-fundador com mais de 80 anos comentou que deveria ter ouvido a palestra dez anos antes, para encarar os riscos associados à governança do seu negócio. Nossa resposta foi a de sempre: talvez tivesse sido melhor começar antes, mas é possível começar a qualquer hora.

No Brasil de hoje, muitas empresas familiares oferecem sucessivas demonstrações de que se esforçam para incorporar práticas mais avançadas de governança em suas várias vertentes: patrimonial, familiar e corporativa. Algumas empresas também buscam incluir nesse processo um salto de qualidade em gestão e controles. Este fenômeno começou na década de 1990 e teve como primeiro movimento coletivo a criação de uma entidade que congregava conselheiros, logo depois amplificada para transformar-se no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), hoje um organismo de referência no país nessa questão.

Empresas familiares representam 80% das companhias que existem no Brasil, de acordo com pesquisa da consultoria PWC. Essas empresas são responsáveis por mais da metade do PIB nacional. Porém apenas 12% desses negócios chegam à terceira geração familiar. Essas altas taxas de mortalidade (ou venda) não são únicas ao Brasil e ocorrem tanto em economias maduras como em desenvolvimento.

Por que as taxas de mortalidade de empresas familiares no Brasil são altas? Segundo a International Finance Corporation (IFC), alguns fatores são: informalidade na gestão; ausência de estruturas como um conselho de administração; inexistência de políticas de atração e retenção de talentos; e principalmente, conflito entre os herdeiros. Todos estes fatores se incluem num conceito amplo: qualidade de governança na empresa familiar.

Raios X da empresa familiar brasileira

As constatações, até recentemente empíricas, de que ocorreram melhorias começam a ser sistematizadas. Este foi o propósito de nosso estudo, cujas conclusões resumimos neste artigo. Nosso recém-criado Núcleo de Negócios Familiares do Insper conduziu um levantamento de práticas em uso no Brasil em 2018. Examinamos empresas familiares de diversos portes, em diversos estágios de evolução empresarial. O exame poderá inspirar famílias empreendedoras a refletir se suas práticas e diretrizes estão no rumo certo. Experiências de outras empresas familiares podem ser também ponto de referência para promover mudanças internas e, com isso, aumentar a probabilidade de sobrevivência do negócio, assim como ampliar o valor do patrimônio empresarial.

A experiência da butique do banco de investimentos Cypress, de São Paulo, é muito reveladora do impacto da ausência de bom padrão de governança corporativa. Segundo Fabio Matsui, sócio da Cypress, as empresas familiares brasileiras que não investem na excelência de sua governança pagam caro pelo erro no momento de vender a empresa. Nos últimos dois anos, a Cypress trabalhou no processo de venda ou compra de 40 empresas familiares. Fabio Matsui nota que o atraso e o não fechamento do deal devido a temas associados a governança (como falta de histórico de balanços auditados ou ausência de conselho de administração com membros externos ou independentes) resultam em três a seis meses de atraso e cerca de 25% de retrocessos. Além disso, empresas com balanços auditados foram negociadas com apreciação média de 20% a 60% em relação ao múltiplo de mercado de empresas similares. Em outras palavras, empresas sem balanço auditado deixam, entre outras lacunas, muitos milhões sobre a mesa em associações com investidores estratégicos ou financeiros.

 

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Tamanho é documento? Não

Alguns resultados parecem óbvios. Por exemplo, empresas de primeira geração tendem a ser menos sofisticadas do ponto de vista da governança, assim como empresas menores. Isso merece uma reflexão cruzada: é comum que empresas pequenas de primeira geração empreguem familiares na gestão. O que precisa ser reconhecido é que, na grande maioria das vezes, a designação de familiares para posições executivas é uma forma de reduzir o custo de operação e de treinar sucessores quando o negócio ainda é pequeno e não comporta muitos profissionais de mercado. Os casos de maior sucesso mostram que as empresas pequenas de primeira geração são aquelas cujo fundador e herdeiros praticam ações de gestão e governança segundo as melhores práticas de mercado. Um mito antigo é que empresas familiares pequenas e/ou de primeira geração não dispõem de recursos para investir em governança. Contrariamente, nossos raios X demonstram que algumas empresas de primeira geração são capazes de evoluir de forma exemplar em governança corporativa. Por exemplo, em toda a amostra há empresas de primeira geração com nota máxima e várias com notas acima da média.

Outra conclusão que não surpreende é o fato de que as empresas de terceira geração tendem a apresentar resultados acima da média, alinhadas com a noção de que a continuidade de controle familiar é facilitada por processos de governança sólidos.

De modo geral, em muitas entrevistas constatamos famílias com consciência de que têm de investir em processos de melhor gestão e governança para almejarem a perpetuidade. É indicativo dessa situação o fato de que há poucas empresas pequenas na amostra, embora elas sejam a grande maioria do espectro empresarial nacional. A assertiva ainda é corroborada pela existência de empresas de porte médio com governança bem avançada, independentemente da geração no controle. O que foi constatado é que o sucesso está calcado em membros da geração no controle cuja visão estratégica está centrada no crescimento e na perpetuidade. Reconhecem que crescer com a velocidade que o mercado exige demanda capital em níveis fora do alcance do grupo familiar. Neste caso, a boa governança é fator crítico para eventuais investidores.

No capítulo perpetuidade, há questões mais complexas. E viabilizá-la, isto é, dar continuidade à própria obra é, na nossa experiência, o desejo quase unânime dos fundadores. Para viabilizar essa longevidade, é preciso que as próximas gerações sejam preparadas e que a família implemente instrumentos de governança familiar sólidos. Se os resultados das empresas de primeira geração mostram que ainda há muito a conquistar na via de boa governança, as empresas de terceira geração ou seguintes mostram resultados muito bons, preparadas para a perpetuidade ou para a admissão de novos sócios, por aquisição ou fusão.

Qual é o elo mais frágil? A família, não o negócio

Dentro do esperado, os resultados referentes a governança familiar foram mais modestos que os de governança patrimonial e corporativa. Por outro lado, as empresas de terceira e quarta gerações no comando demonstram cuidado e esforço no desenvolvimento de iniciativas de convívio familiar, de preparação de herdeiros e de investimento nas próximas gerações.

Uma referência básica para critérios de boa gestão e governança no Brasil é o IBGC, que se vale de seu código de boas práticas e de uma coleção de cadernos segmentados por tema. Em nossa experiência, a implantação de governança em empresas familiares é processo longo e progressivo. Entre o momento da criação de conselho, seja consultivo ou de administração, até o momento em que ele passa a atingir bons níveis de governança muito tempo é transcorrido.

Quais são as ações necessárias para melhor governança?

Qualitativamente, uma série de ações bastante práticas e concretas emerge das nossas entrevistas com os mencionados 54 donos de empresas familiares. Muitas dessas ações não requerem níveis de investimentos altos nem mesmo para empresas pequenas de primeira geração.

• Uma das primeiras ações típicas é separar despesas familiares dos custos operacionais da empresa.

• Para ter boa governança, é fundamental que o sistema de informações gerenciais seja confiável.

• Implantar governança é processo longo. É preciso começar de forma simples e prosseguir sofisticando a implantação à medida que a cultura da empresa se adéque às novas necessidades.

• Evolução de governança produz mudança cultural na empresa. Há maior formalização e melhor disciplina de gestão e de prestação de contas.

• Solidez econômica e financeira faz diferença. É muito mais fácil falar de perpetuidade, governança e sucessão quando os resultados empresariais e um saudável fluxo de recursos dão suporte às práticas que precisam ser implantadas.

Geração atual versus próxima geração: riscos e oportunidades

Nossos achados indicam que há sempre pelo menos uma pessoa da geração atual no comando ou da geração próxima que se torna o agente promotor de mudança. Esse agente vai atuar ou porque acredita no conceito ou porque identificou fatores externos que vão forçar a mudança no ambiente de sua família. São gatilhos na geração atual: envelhecimento ou doença de seus membros, dramas anteriores vividos pela família, o desejo de usufruir do que foi construído, entre outros. Quando se olha a questão do ponto de vista da próxima geração, encontramos pessoas que têm ambição de crescer profissionalmente, com ideias próprias de como o patrimônio da família pode ser mais bem explorado, e que acreditam em poder oferecer o melhor de si.

Nos casos bem-sucedidos que encontramos, sempre há um membro da geração atual com bom senso sufi ciente para entender que as gerações são diferentes e há sempre pelo menos um membro da geração seguinte que reconhece o trabalho desenvolvido pela geração anterior.

Governança da empresa familiar versus pressões externas

A boa governança é essencial também como sólida defesa da família contra pressões de mercado. O capital da maioria das famílias é limitado. Para conciliar os interesses familiares com as necessidades de mercado, há sempre o dilema de distribuir recursos para os acionistas ou reinvestir nos negócios. Nesse momento, valores familiares, união e visão estratégica patrimonial fazem toda a diferença. Nos casos de sucesso encontrados, foram esses fatores que alavancaram o sucesso empresarial. Aqui cabe a observação de que governança não é um fim, mas sim um dos instrumentos à disposição da família para garantir a aderência a seus valores e princípios. Nos casos de sucesso, o sustento da próxima geração nunca estava completamente dependente do trabalho dela própria no negócio familiar. Os membros da próxima geração eram capazes de gerar seu próprio sustento.

Educação da próxima geração como antecedente de desempenho

Em nosso estudo, observamos correlação forte entre a forma pela qual a geração atual educa a geração seguinte e os resultados futuros. Programas de preparação de sucessores, exigências de educação e valorização da disciplina de trabalho estão sempre associados com sucesso empresarial, e a falta de qualquer um desses fatores pode ser associada com o insucesso. Alguns princípios são comuns em empresas familiares de sucesso:

• Implantar governança independe do tamanho da organização e depende dos valores da família e do desejo de usar tal ferramenta para garantir perpetuidade e crescimento patrimonial.

• A não aceitação por parte dos membros da geração atual de que serão substituídos aumenta o risco de perda de patrimônio.

• Qualquer membro da próxima geração só deve vir para a empresa se for capaz de se sustentar e de acrescentar valor diferenciado ao empreendimento.

• A família que valoriza conhecimento, competência e trabalho colhe os frutos na implantação de práticas de governança.

Má governança é garantia de fracasso? Não, porém…

A existência de empresas de porte médio e grande em que as práticas de governança ainda não são desenvolvidas também mereceu reflexão mais profunda.

É preciso um líder muito forte e visionário para entender que o fato de a empresa ser rica hoje não garante que seja rica no futuro. No mundo empresarial nacional, é comum encontrar líderes que galgaram posições na sociedade por meio de seu trabalho e, hoje, podem oferecer a seus descendentes facilidades de que não usufruíram quando crianças ou adolescentes. Por outro lado, há também a síndrome de “não mexer em time que está ganhando”. A combinação dessas duas condições pode ser explosiva. Se, em acréscimo, houver pouco zelo do líder no trato dos desejos da próxima geração, passa ser provável que os projetos de implantação das melhores práticas de governança sejam postergados e ocorra perda de valor patrimonial.

Em nosso levantamento foram encontradas também distorções como:

• Visão feudal da propriedade: a geração atual de alguns ramos familiares decide que a gestão deve ser conduzida por membros da geração próxima de cada ramo, independentemente de competência ou vontade de trabalhar no negócio.

• Concentração de patrimônio em um só ramo de negócio: o líder da geração atual se sente inseguro sobre a escolha dos gestores do negócio e se mantém na gestão porque não tem riqueza secundária para garantir sua velhice. Neste caso, ele resiste a qualquer iniciativa de implantação de práticas de governança, vistas como ameaças à sua liderança e a seu futuro pessoal.

• Obsolescência tecnológica e operacional: encontramos conselhos que acabam validando visões desconectadas da evolução do mercado. Normalmente, isso está ligado ao conceito de “se não foi inventado aqui, não serve”, e acaba levando à exaustão do patrimônio.

• Próxima geração descompromissada ou desmotivada: a resistência à mudança da geração atual é tão intensa e tão hermética que os sucessores naturais optam por cuidar da própria vida. Normalmente, essa condição vem acompanhada de valores familiares fracos.

Perpetuidade, continuidade e preservação do legado

Perpetuidade, continuidade e preservação de legado só serão atingidas se a geração atual e a próxima geração estiverem entrosadas. Como o ambiente empresarial só aumenta em complexidade, para que a próxima geração possa contribuir de forma positiva e diferenciada é preciso que esteja devidamente preparada. Isso implica educação, treinamento e intercâmbio de experiências pessoais. As empresas bem-sucedidas, de qualquer porte, investem na preparação das próximas gerações. O conceito é que o acionista competente agrega valor, enquanto o acionista despreparado atrapalha.
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Fernando CuradoFernando ChaddadAline Porto e Thiago Penido são Membros fundadores do Núcleo de Negócios Familiares do Insper.

Publicado por Harvard Business Review

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