Candidatos qualificados demais são os melhores

março 27, 2017 2:52 pm - Publicado por

Colunista do Financial Times, Andrew Hill fala que funcionários que ocupam vagas inferiores à sua capacidade podem usar o tempo livre para exercer sua criatividade

(Via Valor Econômico)

Ser qualificado demais talvez seja uma das piores justificativas para ter sido preterido em um processo de recrutamento. A mensagem ao candidato é simples e direta: você não só fracassou, como também perdeu tempo e esforço para conseguir diplomas desnecessários, uma experiência de carreira supérflua e habilidades técnicas sem função. Essa rejeição loquaz esconde uma série de preocupações que incluem o medo de que esses candidatos sejam caros demais (mesmo com eles protestando e afirmando estarem dispostos a trabalhar por menos dinheiro), esnobes demais (apesar de eles se rebaixarem para demonstrar humildade) ou difíceis demais de contentar (não obstante seu desejo de conseguir apenas uma ma coisa: esse emprego).

Enquanto isso, nos escalões mais altos das organizações, o culto ao ato de se estar sobrecarregado persiste. A suposição de que é terrível estar desocupado encoraja a ideia de que o empenho incansável, ao ponto de se chegar ao excesso de trabalho crônico, é o ideal. Em outras palavras, o tempo ocioso se torna um pecado.

Acontece, porém, que essa farsa se deve aos recrutadores. Um novo estudo para o “Academy of Management Journal” sugere que os funcionários muito qualificados que são colocados para fazer aquilo para o qual foram contratados frequentemente usam de maneira bastante produtiva o resto de seu tempo. Essa é uma constatação útil. Muita gente está em empregos em que consegue fazer tudo muito facilmente.

À Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube das nações ricas sediado em Paris, um quarto dos trabalhadores relata um descompasso entre suas capacitações e suas especificações de trabalho, com o excesso de capacitação sendo mais comum do que a falta dela.

Com a automatização ganhando espaço na vida profissional e os humanos bem qualificados sendo forçados a procurar trabalhos de capacitação inferior, essa diferença vai aumentar. Saber como gerenciar essas pessoas passará a ser mais importante. O temor de os profissionais muito qualificados ficarem desmotivados é bem fundamentado.

Há muitas evidências sobre o destino daqueles que não podem exercer todo seu potencial. No ano passado, por exemplo, um gerente francês processou a distribuidora de perfumes onde ele trabalhava porque estava tão entediado com o que fazia que teve um colapso nervoso. Há também o caso de um servidor público espanhol que foi acusado de simplesmente não ter comparecido ao trabalho durante seis anos, depois que ele foi empurrado para uma função que não lhe dava perspectivas. Pessoas que o conheciam disseram que na verdade ele aparecia no local de trabalho, mas passava a maior parte do tempo lendo a obra de Spinoza, um filósofo holandês que se disse qualificado demais para a função de triturador de lentes.

O novo estudo comprova a ameaça do tédio – mas somente quando a distância entre as qualificações de um funcionário e as tarefas que ele ou ela exerce se torna grande demais. Caso contrário, Bilian Lin e Kenneth Law, da Universidade Chinesa de Hong Kong, e Jing Zhou, da Rice University, observaram algo diferente e mais positivo. Os funcionários com um pouco de folga usam seu tempo livre para repensar suas obrigações – prática conhecida como “task-crafting”, realizar atividades mais criativas e contribuir para o andamento tranquilo de suas organizações. Algumas pessoas vão preferir aplicar suas habilidades não aproveitadas fora do local de trabalho. Mas muitos que estão presos na inadequação de competências ficariam mais felizes se pudessem tirar mais de seu dia de trabalho, para benefício próprio e de seus patrões.

No entanto, uma dúvida importante e não respondida é como os gestores conseguem apontar onde um membro da equipe se encontra na curva entre o trabalho subordinado útil e o tédio completo. Não há uma solução “única”, diz um dos autores do novo estudo. Mas há exemplos de como se pode pagar para ter muitos trabalhadores qualificados. Perguntado no Quora.com sobre os aspectos negativos de se trabalhar no Google, um colaborador respondeu: “A pior parte é… que os trabalhadores são qualificados demais para o trabalho… Quando o padrão é ser incrível, e o trabalho não é duro, é mais difícil se diferenciar”. Isso pode ser verdade. Mas as empresas que podem contratar funcionários muito capacitados para tarefas menores tendem a ficar à frente da manada – desde que elas consigam impedir esses trabalhadores de sucumbir ao tédio improdutivo.

Andrew Hill é colunista do Financial Times

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